16 de dez. de 2009

"Custo Dilma" exigiu aumento de gastos, diz Biasoto

Valor Econômico - Sergio Lamucci e João Villaverde, de São Paulo

A forte aceleração dos gastos correntes do governo federal se deve ao "custo Dilma", diz o diretor-executivo da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) de São Paulo, Geraldo Biasoto Jr., em referência, claro, à ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, provável candidata do PT à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "O governo tem de carregar uma candidata fraca. Tudo que está acontecendo hoje não aconteceu no resto do governo Lula", avalia Biasoto, para quem a expansão fiscal mais forte começou a partir do fim de 2007.

Economista próximo ao governador José Serra (PSDB), com quem trabalhou no Senado, no Ministério da Saúde, na prefeitura de São Paulo e agora no governo paulista, e professor licenciado da Unicamp, Biasoto diz que o aumento de despesas correntes (pessoal, aposentadoria, custeio da máquina, programas como o Bolsa Família) tira espaço para a elevação do investimento público, fundamental para que o país possa crescer a taxa elevadas, sem esbarrar em gargalos de infraestrutura. "Essa carga de gasto corrente impede o aumento do investimento", afirma Biasoto. Para ele, não é saudável que uma economia tão débil do ponto de vista da infraestrutura como a brasileira cresça a taxas expressivas.

"É preciso preparar o país para crescer", diz Biasoto, para quem será inevitável promover em 2011, primeiro ano do próximo governo, um ajuste na atual política fiscal expansionista. O problema é que a tarefa terá um ônus maior, dada a inércia provocada pela contratação de despesas correntes tão elevadas.

Biasoto vê a possibilidade de o país "se plantar como uma economia madura e um polo de atração de investimentos" na América Latina, "um local para onde os investimentos de grandes empresas internacionais podem vir". O risco para a concretização desse cenário, adverte, é a valorização do câmbio e a sua tendência a continuar apreciado, o que facilita importações e desestimula exportações. Biasoto também se preocupa com a trajetória do déficit em conta corrente, que alguns economistas projetam acima de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010 - neste ano, deve fechar em 1,3% do PIB. A seguir, os principais trechos da entrevista de Biasoto.

Valor: Um crescimento acima de de 6% em 2010, como preveem alguns analistas, é possível?
Geraldo Biasoto Jr.: É possível. No último ano de mandato, é possível verificar que todos os três níveis de governo ampliam gastos públicos, todo mundo espera para dar reajuste de pessoal, para acelerar obras, sempre há um elemento de ciclo político. Por outro lado, estamos hoje com uma espécie de política anticíclica continuada. O crédito se expandiu e continuou expandido. A taxa de juros caiu e hoje, em termos históricos, é baixa. As mesmas medidas de IPI ficaram. Mesmo tendo um pouco de dúvida quanto ao cenário externo, temos um viés de ciclo político e de elementos internos que indicam um crescimento que poderia ser até maior que 6%.

Valor: O Brasil está preparado para crescer a essa taxa?
Biasoto: Nós temos de preparar a economia antes de crescer. São visíveis os problemas. Não conseguimos andar em shopping centers, nas ruas, está tudo parado. Nos aeroportos, está tudo parado também. A economia brasileira ficou muito tempo crescendo de maneira manca, distorcida. Alguns setores cresceram bastante e outros setores ficaram completamente parados. Há uma escassez do crescimento potencial que não é tão dramática do ponto de vista da indústria privada, mas é dramático do ponto de vista dos serviços públicos em geral. Esses você esgarça muito e aí o gargalo é pesadíssimo. Se nós quisermos crescer com consistência, nós temos que preparar o crescimento. O investimento público é fundamental porque há muitas áreas em que ele é crucial.

Valor: Como o sr. avalia a política fiscal do governo na crise? Ela foi anticíclica?
Biasoto: O governo já vinha contratando gastos. A crise potencializou esse movimento. Em 2008, o superávit primário do governo central foi de R$ 71 bilhões. No ano que vem, esse número deve ficar em R$ 34 bilhões. E em 2012, seguindo essa tendência, teremos um déficit de R$ 7,8 bilhões. [de janeiro a outubro deste ano, o superávit primário do governo central ficou em R$ 27,6 bilhões].

Valor: Mesmo com a recuperação da receita que deve ocorrer em 2010?
Biasoto: Talvez com o crescimento mais forte esses números possam ser um pouco melhores, mas a tendência é essa, quer dizer, caminhamos para um déficit primário. Estamos fritando o superávit primário, mantendo um nível de investimento público baixo, ou seja, considerando a velocidade atual do PAC - que é lenta. Se o PAC deslanchar, o derretimento do primário será mais rápido.

Valor: Então está contratado um ajuste fiscal forte em 2011?
Biasoto: Vai ter de fazer. O mercado está sendo leniente em não discutir essa questão. Esse negócio é o custo Dilma. O governo tem de carregar uma candidata fraca, porque tudo que está acontecendo hoje não aconteceu no resto do governo Lula. Essa expansão fiscal começou no final de 2007 [primeiro ano do segundo governo Lula]. Antes isso não estava acontecendo. É um custo do candidato. O ônus de fazer um ajuste fiscal agora será muito mais alto do que era antes.

Valor: O sr. está preocupado com os movimentos "parafiscais", de capitalização do BNDES e da Petrobras, que aumentam a dívida bruta do governo?
Biasoto: Isso é delicado. Havia uma armação fiscal prevendo que o Tesouro não deveria financiar os órgãos de crédito do governo. Mas não é o que tem ocorrido. O Tesouro está financiando o BNDES, a Caixa etc. Não acho o crédito público ruim, mas isso está abalando uma coisa muito crucial dentro do sistema. Esse crédito do BNDES é uma maluquice.

Valor: Qual é a consequência para a economia dessa política fiscal?
Biasoto: O ruim para o Brasil é o fato de que, para crescermos de modo sustentável, precisamos muito de investimentos públicos. Há uma equação de aplicação e rentabilidade que, em muitos casos, apenas o setor público pode agir. Você assumir a concessão da Bandeirantes é tranquilo, fazer outra pista na Imigrantes também. Mas há investimento que não adianta. O Estado pode correr risco que o setor privado não consegue. Essa política fiscal está consolidando um enorme gasto corrente e, na hora que precisar fazer ajuste, será complicado. Antigamente era mais fácil, porque a inflação ajudava. Hoje, para achatar gastos correntes é difícil. Quer dizer, estamos impedindo a chance de aumentar o investimento com essa carga de gasto corrente.

Valor: Além da questão fiscal, algum outro desequilíbrio na economia o preocupa?
Biasoto: Temos um pepino seríssimo que é o seguinte: o pessoal do mercado diz que o déficit em transações correntes sobe de 1,3% para quase 3% do PIB no ano que vem. Muito provavelmente será facilmente financiável porque o mercado acredita no Brasil. É muito tranquilo o investidor estrangeiro vir para o Brasil sabendo que a taxa de câmbio está se valorizando. Você ganha com juros muito mais altos que no mercado internacional, além do câmbio valorizado. Agora, na hora em que o déficit em transações correntes dobra, o investidor pensa: "será que não vai haver uma descontinuidade na trajetória do câmbio?" O cupom cambial [o juro em dólar] muda imediatamente. Há muito comportamento de manada dentro do mercado, e isso é legítimo. As pessoas estão administrando fundos, então, se alguém vai contra o comportamento da maioria, vai perder dinheiro. Ele tem que ir junto, tomar a direção do mercado.


Valor: Mas o investimento estrangeiro direto não tem sido mais relevante do que a entrada de capital para a renda fixa?
Biasoto: Se olharmos o investimento direto por dentro, veremos que há muito serviço financeiro, que se confunde com elementos de investimento em carteira. É um pouco melhor que antes, porque o investimento em portfólio prevalecia. Isso reduz a vulnerabilidade em relação ao passado. Mas mesmo o investimento estrangeiro direto é muito financeiro. Parece que é trazer dinheiro para comprar máquina, mas não é verdade. Muitas vezes ele traz dinheiro para fazer "take over" de uma empresa, para constituir capital e alavancar suas operações, para melhorar posição na oferta de leasing. Mesmo o investimento direto é muito mais financeiro e aproveita o câmbio valorizado.


Valor: Os investidores estrangeiros estão muito otimistas em relação ao Brasil. Há motivos para tanto otimismo?
Biasoto: Acho que nós temos muitas condições internacionais de nos plantar como uma economia madura e um polo de atração de investimentos. Hoje a gente pode ser, para a América Latina como um todo, um local para onde os investimentos de grandes empresas internacionais podem vir. A gente tem tudo para isso.

Valor: Mas isso já não está ocorrendo?
Biasoto: Está ocorrendo em parte, mas o pepino é o fato da taxa de câmbio estar muito valorizada e com tendência de continuar valorizada.

Valor: O que deve ser feito para combater essa valorização?
Biasoto: Na verdade, o mercado é mal articulado. Há uma tendência de valorização da moeda. Na hora em que você deixa os bancos trabalhando com limites super-extensos, permitindo que eles fiquem em posições que eles querem, comprados ou vendidos, em que há um mercado imenso de derivativos no exterior, que possibilita que os bancos façam a contraface disso aqui dentro, é lógico que vai ter tendência à valorização. O pior é ficar acumulando reservas com uma política cambial completamente passiva. Lembra qual era a crítica ao overnight? Era que havia uma zeragem automática, então o cara passava o dia inteiro especulando e chegava no final do dia ele ainda tinha aquela taxinha, então tudo bem, ele não perdia. O que acontece hoje? O sujeito pode fazer o que quiser durante o dia porque ao final o Banco Central vai lá e compra tudo que sobrou no mercado, para tentar manter a taxa de câmbio sem despencar.

Valor: Os juros vão subir em 2010, como prevê a maior parte dos analistas?
Biasoto: Acho que sim, e até por isso o crescimento não será de 6%. O Banco Central deverá aumentar as taxas de juros logo em março, por um simples cálculo econômico e político. É plenamente defensável que ele olhe o cenário eleitoral e antecipe uma elevação. Se elevar os juros perto da eleição, vai dar margem para uma enorme manipulação política. Nesse momento, estamos com crescimento forte, com expansão fiscal muito expressiva e crédito aumentando. É muito provável que o BC estanque essa aceleração antes que se descontrole. Não acho bom uma economia tão débil, do ponto de vista da infraestrutura, crescer tão rápido como estamos crescendo. Podemos crescer forte num ano, mas em seguida começaremos a bater nos gargalos. Além disso, se existirem movimentos, e eu acho que vai haver, de excesso de déficit em conta corrente e algum perigo nos fluxos de capitais, o Banco Central vai elevar ainda mais as taxas de juros. O que vai acontecer é que o governo, por meio do Banco Central, vai usar a taxa de juros como forma de controlar o fluxo de capitais.

Valor: Mas o BC não se preocupa apenas com a meta de inflação?
Biasoto: De jeito nenhum. A inflação, do ponto de vista de quem decide a taxa, é o segundo elemento. O primeiro elemento é a taxa de câmbio. Ele diz isso porque é o discurso. A política econômica é um jogo de taxa de câmbio e taxa de juros.

Valor: Não é o tripé regime de metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal?
Biasoto: O câmbio é a variável fundamental para o controle da inflação. Como é que eles conseguiram controlar a inflação durante todo o período Palocci [ministro da Fazenda entre 2003 e março de 2006]? Câmbio em trajetória de valorização, IGPs caindo, porque a outra parte da meta não é controlável em curto espaço de tempo. É lógico que há momentos em que eu tenho que trabalhar a elevação de juros para controlar o excesso de demanda. Mas o dado macroeconômico mais crucial é a relação entre o preço da moeda nacional, que é o juro, e a taxa de câmbio. O estrutural é isso. O sentido das metas é regime de controle da demanda interna e das expectativas.

Valor: Como se muda esse cenário?
Biasoto: Primeiro, tem que atuar no mercado. Em vez de atuar só no final do dia, o BC tem de trabalhar no mercado, fazendo compras e vendas, tem que reduzir a condição dos bancos de fazer operações. Tem que limitar, se não nunca vai dar certo.

Valor: Qual é o problema dessa atitude previsível do BC?
Biasoto: Não é previsível, é passiva. Ela ajuda a valorizar o câmbio. O mercado sabe direitinho o que o BC vai fazer, qual vai ser a taxa de câmbio. Não há problema, ele pode especular, vender e comprar e no fim do dia vai conseguir no mínimo ficar com a operaçãozinha casada.

Valor: O que o sr. acha da ideia de que uma política fiscal mais apertada ajuda a ter um câmbio naturalmente mais desvalorizado?
Biasoto: Não é verdade. O nosso problema é que nós temos uma economia de fato superaberta e que os fluxos de capital são "n" vezes maiores aos fluxos reais. Não são apenas os fluxos efetivos, mas os fluxos potenciais, como os de derivativos.

Valor: Qual é a condição para baixar os juros no Brasil para níveis nunca experimentados?
Biasoto: A condição é derivada do manejo dos fluxos financeiros pelos bancos. No fundo, da forma como está, isso nunca vai acontecer. Os bancos estão todos articulados para fazerem a administração de carteiras contando com esse sistema. Basta olhar o tamanho das taxas de administração dos fundos de investimentos dos bancos. É escandalosa. É possível reduzir a taxa de juros? Sim, mas você precisa de um nível de controle maior sobre a gestão de liquidez dos bancos e sobre a gestão de entrada e saída dos fluxos financeiros da qual os bancos participam pesadamente. Com os dois você talvez tivesse espaço para reduzir a Selic.

Valor: Qual são os empecilhos para reduzir a Selic abaixo dos 8,75% atuais?
Biasoto: A remuneração da poupança é o grande pepino. Aí você baleia a forma de gestão dos bancos. Se você tirar as taxas de administração dos bancos, você reduz o lucro deles pela metade. E o fato de você baixar para 7,75%, por exemplo, levaria muito dinheiro para a poupança.

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